quinta-feira, 19 de julho de 2018

Memórias de uma deusa. 7h45, o despertador toca, hora de acordar, levantar e sair... Praticamente todos os dias são ou parecem serem iguais... Tudo ao redor circula num tempo em que a única certeza que se tem é a de ver que o dia passa, corre, escoa... mas não para mim, não neste momento, a impressão que tenho é que o tempo parou, eternizou-se num simples piscar de olhos. Quero a vida pulsante, quero ver o impossível, quero o sabor do doce, do salgado, quero o cheiro do mar, das flores, da chuva sobre a terra, quero alfazemas e surpresas, estourar balão, andar, correr e brincar. 100 anos me permitiram experimentar uma vida sem excessos e sem muitos desafios. Mesmo sendo mãe de 3 filhos homens, o que vivi foi vivido e pronto. Espere um minuto, ouço ao longe... o que parece ser um canto de pássaro...meus olhos correm em busca desta rara imagem... mas nada encontro... melancolia... – Mas bem, como eu dizia, a vida era assim, um dia após o outro e num interminável fim do dia tudo parecia que se ia, sabe-se lá para onde. Cresci longe deste mundo, onde minha história não lembra em nada o viver de agora... É estranho sentir-se assim, mas também curioso... Minhas vagas lembranças de minha família, pais e irmãos, tios, avós, primos, sobrinhos e amigos... lá se vão num fio escasso de memória que o dia jaz. Fui menina e me parei moça, moça bonita, bem feita, jeitosa pra costura, entre uma roupa e outra, um ponto e outro ia “tricoteando”, “crocheteando” com linhas tão finas e tênues que mal se percebia a diferença entre os lados. Dos amores que encontrei, apenas lembranças de muitas perdas, lutas e recomeços, me sentia tão inocente. Ao ser mãe pela pela primeira vez descobri um universo paralelo entre a realidade e o sonho. Como foi difícil, ser tão jovem e aprender a ser mãe, mal sabia ler e escrever, e agora, o que ensinar e como ensinar... – a vida se encarrega disso – diziam as vozes mais experientes... hum... mal sabiam eles, de meu pânico em meio a ignorância que a vida me empunha. Pois perdera muito nova meus pais, cada um no seu destino, e disso ninguém falava... seguia eu em busca daquilo que era de fato meu por direito. Sempre cri nisto e sempre continuei acreditando. Lembro-me do meu primeiro vestido, do meu primeiro sapato com salto, como minhas pernas pareciam compridas, me sentia tão alta, altiva e a sensação era muito boa, se não fossem os lugares por onde andei não saberia ao certo ou a diferença entre as alturas. Casas frias, noites gélidas, comida rala, e a solidão só era quebrada ao som de um choro... meu bebê chora... meio tonta e cheia de necessidades atendo-o com um colo caloroso – aqui me parece um paradoxo, como uma pessoa com tanto frio era capaz de aquecer alguém. Um dia, sem explicação, você, meu primeiro filho, foi levado pelo destino... triste partir assim... “eita” jeito torto de partir... então me pergunto, curiosa que sou: onde foram parar suas memórias? Meu segundo filho nasceu menina, lindo nome eu mesma escolhi, nome daquela que encheria a vida com luz e brilho de um anjo que precisou ser resgatado pelas mãos de Deus. Menina, mas já te vais? Ainda não te ensinei nada menina, espere mais um pouco, quero te mostrar a leveza da vida através do meu amor... A menina teve pressa, seguiu seu destino sem olhar para trás, tive a nítida certeza que um dia seus olhos encontrariam os meus e com suas mãozinhas pequenas limpariam minhas lágrimas que jamais secaram. Dor infinita, experimentei um sabor muito amargo e triste. Então, vem meu menino franzino, polaco, nariz remelento com olhos curiosos sobre o mundo. Virou professor, será que foi feliz? A vida seguia como devia seguir... Agora conhecia o mar, mesmo inebriada de maresia, sentia-me pouco confortável em sua presença. Meu menino professor me ensinara a sentar e contemplar este mar que tanto me perturbava. Tantos rostos indo e vindo, tantas histórias, quantos conhecidos, quantos parentes, quantos amigos... e no mundo fora do meu, a história era marcada pelas guerras, pelos poderes, pelas estações, pelos novos e pelos velhos paradeiros que surgiam e ressurgiam compondo uma sinfonia inconfundivelmente, intrepidamente e horrivelmente harmoniosa. Quem explicaria tudo isto, eu? Não, não tenho tamanha pretensão de explicar nada, até porque o professor aqui não sou eu... sou apenas uma vivente ou sobrevivente de meu registro. Sou única, pretensiosamente, única! Irmãos do mais velho ao mais novo, de meus tios, de meus primos, sou única... aqui me compadeço desta glória. Já me basta, não quero mais falar neles, meu peito arde, sinto falta há tantos anos que nem os ouço mais ao calar da noite e isto também me entristece. Meu terceiro menino, este veio em tempos melhores. Criança linda, iluminada... sua história estaria marcada para sempre em nossos laços que perpassariam a maternidade. Filho amado, que luta esta tua, sinto-me tão orgulhosa de sua façanha. Espero não ter atrapalhado suas escolhas, pois odiaria me sentir culpada. Meus dias e teus dias seguem assim... Lembro-me de conhecer o mundo fora do meu mundo em nossas viagens. Aventuras, indescritivelmente, “loucas”. Quantos sons descobri, quantas imagens de lugares, de pessoas, de jeitos e trejeitos conheci. E os meus e teus dias seguem assim... Sempre gostei de observar as expressões das pessoas nas fotos, a maneira que olhavam e seus sorrisos comunicavam do quanto eram válidos aqueles momentos. Creio que ao observar nossas fotos, verás em meus olhos ou sorrisos o meu sinal de agradecimento. Nunca fui muito boa com as palavras, ou talvez elas não me eram tão próximas. Mas tive um filho professor e disto me orgulho. Rotina, uma palavra curiosa, mas muito perspicaz, reconhece em sua rudez os percalços desafiadores de um dia, após em meio ao cansaço e fadiga, um tempinho para observar a beleza com que as horas passam numa maestria perfeita do tempo em que Deus nos permite viver até quando o destino ousar ditar suas ordens. Penso, agora, não mais em minhas lembranças de um passado que até bem pouco tempo eu o discursava com tranquilidade para meus netos, bisnetos e tetranetos. Era como se entrássemos em uma cápsula do tempo... as melhores histórias surgiram destes momentos. Mas, penso qual o propósito de existirem palavras como prisão e liberdade? Meu filho professor poderia explicar sobre isto... Mas permita-me concluir, pois o sono bate... Tenho um corpo preso a minha condição física, mas minha mente liberta-se em busca do que está ao meu redor, um cheiro de comida, uma conversa, uma voz que vez ou outra me desperta, um canto de um pássaro. Todos cuidam de mim, mas ninguém percebe que a minha criança brinca de esconde-esconde. Meu filho caçula, somos dois em um só, tua presença, teu cheiro, teu carinho e principalmente tua voz me fazem despertar do sono todos os dias. Ouço teu despertador, são 7h45 hora de acordar, levantar e sair... Quero dizer-te: a voz não sai – Mas... vá e volte em paz! Eu te amo e muito obrigada! ... P.s. Querida vó Lourdes, nome de Santa, ouvir tuas histórias narradas desde que eu era criança, sempre me fascinaram e fascinam até hoje, quero ser num simples fragmento do meu viver, esta inspiração! Senti necessidade de falar por ti, imaginei-me deitada ao teu lado conversando como sempre fazíamos. Tua frase nunca saiu de minha mente, pois teus olhos me falaram com a alma: “Viva bem e seja feliz”... desafio difícil quase que impossível... Sinto em não estar presente o quanto eu gostaria, às vezes a vida se compara a um novelo de lã que saiu da ordem e embaralhou os fios deixando-os num verdadeiro caos, não que isto justifique minha ausência, mas sinto-me também presa em um corpo fatigado pelo processo social. A liberdade aqui é para mim, igual a sua, em minha mente corre uma vida saltitante, pungente de tantas memórias reais e imaginárias, mas com uma certeza de que carrego um orgulho imenso de ser sua neta. Muito obrigada por tanto amor, dedicação, espera e carinho. Amo-te, Neta... (19/07/2018)

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